O que move as fake news e o negacionismo científico?
Filósofo explica – com evidências – o que leva pessoas a crerem em teorias estapafúrdias, como o terraplanismo. E como a extrema-direita se aproveita de emoções identitárias para atacar o conhecimento e promover o ódio ao próximo
Por Ernesto Perini, entrevistado por Marco Weissheimer, no Sul21
A universidade está sob ataque. E não é só no Brasil. Centros de produção de conhecimento e comunidades de valores éticos e políticos que defendem a democracia, a liberdade de pensamento e o respeito às diferenças, elas se tornaram alvo da onda conservadora e de extrema-direita que atinge diversos países no mundo. A munição desse ataque conjuga o uso de fake news, informações falsas e crenças desprovidas de qualquer evidência, mas que funcionam como critérios identitários, com um mesmo objetivo: desmoralizar as universidades como centro produtores de conhecimento e de diversidade.
Para o pesquisador Ernesto Perini Santos, professor do Departamento de Filosofia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o resultado conjugado desses ataques é desastroso para a produção do conhecimento. “Se a universidade perde a liberdade e passa a não funcionar mais com a sua própria dinâmica, nós perdemos a produção do conhecimento. A dinâmica de produção do conhecimento tem que funcionar livre de constrangimentos”, afirma.
o Filósofo avalia, entre outros temas, por que as pessoas passaram a tomar como verdadeiras coisas sobre as quais elas não têm evidência nenhuma e são completamente implausíveis. Para Ernesto Perini, essa proliferação pode ser comparada a uma epidemia: “O nosso problema em relação a coisas como o terraplanismo, o criacionismo ou o negacionismo em relação ao aquecimento global é quase um problema de epidemiologia de ideias”.
Sul21: Como surgiu teu interesse em abordar os fenômenos da chamada “pós-verdade” e das fake news como objetos de uma reflexão filosófica?
Ernesto Perini: Eu, como muita gente, estou muito preocupado com o que está acontecendo no mundo, com a eleição de governos autoritários e antidemocráticos, cuja vitória foi resultado de campanhas que utilizaram informações falsas, sem nenhuma base evidencial e sem nenhuma razoabilidade. Trata-se de um fenômeno global. Nós vimos aqui no Brasil como a eleição de Bolsonaro se deu, em grande medida, baseada na difusão de notícias e informações falsas, mas isso aconteceu em outros lugares também, associado sempre a um determinado tipo de política. Não é uma coisa distribuída de maneira uniforme e homogênea no espectro político.
Sul21: Em que medida, na tua avaliação, as novas formas de circulação da informação passaram a influenciar o processo de formação de crenças das pessoas?
Ernesto Perini: Muita gente afirmou que, com as possibilidades de difusão de informação pela internet, todo mundo poderia produzir conteúdo, sem nenhum filtro institucional ou epistêmico, e que isso seria bom para a produção do conhecimento. Em alguma medida isso é verdade. Hoje, o acesso a qualquer tipo de informação é muito maior do que antes. Você pode, praticamente sobre qualquer tema, achar informações sobre ele, das maneiras mais diversas e em diferentes níveis. A Wikipédia é só uma maneira de fazer isso. Há várias outras maneiras que realizam esse ideal de, digamos, democratização do acesso à informação. Mas há outros efeitos que também devem ser considerados.
Esses outros efeitos decorrem de um conjunto de fatos conjugados. Em primeiro lugar, a difusão de informação na internet é muito mais barata que o modelo de difusão de informação anterior. E é mais barato em dois sentidos. Ela custa mais barato mesmo. Publicar um livro é muito mais difícil e caro, assim como publicar em uma revista acadêmica. Já na internet, qualquer um pode criar um site e publicar conteúdo sobre um tema qualquer. Mas há outro custo que é muito menor na internet, que é o custo reputacional. Numa comunidade pequena, seja no caso de uma cidade ou de uma comunidade acadêmica determinada, se você defender uma tese que é manifestamente falsa, você vai pagar o custo dessa defesa. Todo mundo da sua comunidade vai dizer que essa tese não tem sentido nenhum. Com isso, vou pagar um custo com a minha reputação. Já a internet faz esse custo praticamente desaparecer. Sempre haverá quem concorde com a sua afirmação. Algumas pessoas dirão que é uma estupidez, mas outras pessoas dirão que você está certo. Então, você pode escolher quem você escuta. Em certo sentido, a própria dinâmica da internet escolhe com quem você reage.Um terraplanista, por exemplo, não tem espaço para defender suas teses na universidade, pois se trata de uma tese completamente estapafúrdia, que não faz sentido nenhum. Mas ele pode criar um blog sobre isso e defender sua tese em um espaço sem filtro acadêmico.
Um sociólogo francês, chamado Gérald Bronner, verificou que se você fizer uma pesquisa no Google sobre a “psicocinese” (a capacidade de mover os objetos com a mente), dos 30 primeiros sites listados na busca, 70% afirmam que ela existe. O mesmo padrão existe quanto à existência do monstro do Lago Ness ou para o terraplanismo. O que acontece, por um lado, é que essas crenças têm um valor identitário para as pessoas. Por outro lado, não faz sentido algum entrar nestes espaços para tentar refutar essas crenças. Isso não teria efeito nenhum para essas pessoas pois essas crenças têm um papel identitário. Tudo isso cria uma situação muito estranha que tem um efeito de retroalimentação, gerando uma ilusão de consenso que resulta em toda essa oferta viciada que existe na internet.
O terceiro fator está associado à tese inicial de que o fato de a oferta ser desregulamentada, sem filtro, resultaria em uma ampliação do conhecimento. O resultado disso seria que as teorias científicas iriam prevalecer. No entanto, isso não está acontecendo por duas razões, em certa medida, independentes. A primeira razão é que as teorias científicas são de difícil acesso. Para você dominar uma teoria da física, química, biologia, genética ou seja lá que área do conhecimento for, é preciso ter um arsenal teórico importante. É preciso ter um instrumental matemático, ter acesso a dados que são eles mesmo apresentados de maneira complexa. Assim, uma teoria científica vai produzir, frequentemente, a sensação de frustração. Além disso, uma teoria científica pode ir contra valores que as pessoas já têm, contra imagens que elas têm do mundo, contra visões mais intuitivas.
Sul21: A maioria das pessoas não conseguiria explicar, tecnicamente, os princípios da Lei da Gravidade, de Newton, ou de outras teorias científicas. Boa parte das nossas crenças em teorias científicas estabelecidas repousa também numa confiança na comunidade científica, em um modo de fazer ciência. Parece que essa relação de confiança também está sendo atingida em meio a esse processo de proliferação de crenças e teorias absurdas.
Ernesto Perini: Sim. O conhecimento especializado demanda muitos elementos. A gente precisa conhecer muita coisa para entender, por exemplo, debates envolvendo o tema da manipulação genética. Temos aí problemas éticos envolvidos, mas também conhecimento técnico que é dominado por quem estuda genética. Isso vale para tudo. Sobre esses temas a gente defere para especialistas. Fazemos isso o tempo todo. Quando você vai a um médico você defere conhecimentos técnicos para ele. Quando você contrata um engenheiro ou arquiteto, da mesma forma. Então, a falta da confiança no especialista terá um papel muito importante na ocorrência dos fenômenos que estamos abordando aqui.
Sul21: Nos casos envolvendo temas de gênero e de sexualidade, o fato de determinadas crenças assumirem um papel identitário fica claro. Já em casos, como o da terra plana, essa relação não parece tão óbvia. Em que medida a crença na teoria da terra plana pode desempenhar esse papel identitário? Por que essa teoria, que já é antiga, ganhou a proporção que ganhou, na tua opinião?
Ernesto Perini: Na era moderna, a origem desse fenômeno remonta a um inglês do século dezenove, Samuel Rowbotham, que escrevia sob o pseudônimo “Parallax”. Ele diz que quer tomar o conhecimento para o povo e desenvolve a tese de que cada um deve produzir o próprio conhecimento a partir da própria experiência e das ferramentas lógicas que cada um tem. Esse inglês está na origem do terraplanismo contemporâneo, que tem um movimento contínuo desde então, que foi potencializado pelo modo de circulação da informação permitido pela internet.
Os terraplanistas são pessoas que têm como identidade a produção daquilo que tomam como verdadeiro, a partir das experiências que conseguem fazer e que podem ser mais ou menos articuladas e mais ou menos sofisticadas. Cada um é o mestre das próprias teorias, digamos assim. Eu acho que a identidade do terraplanismo é a identidade das pessoas que produzem o conhecimento contra o establishment, contra as autoridades. Isso cria uma identidade. Essa ideia passa a funcionar como marcador de pertencimento a um grupo contra especialistas. Isso se desdobra em duas coisas. A primeira é que eles precisam ter uma teoria de porque as pessoas dizem que a terra não é plana, mas sim um globo. É uma teoria do complô associado, uma teoria da conspiração que abre espaço para uma série de outras teorias. A segunda é que essas teorias, frequentemente, se aliam com outras teorias, com outras visões diferentes em relação ao establishment. Pode ser o movimento contra a vacinação ou a história de que o homem nunca chegou à Lua. É como se dissessem: nós somos as pessoas que não acreditam naquilo que nos dizem para acreditar. Que cada um decida por si mesmo aquilo que é verdadeiro.
Sul21: Mais ou menos junto com o fenômeno das fake news, ganha espaço a noção de pós-verdade. Em um recente seminário, você se referiu a essa expressão como um rótulo potencialmente enganador. Em que sentido, a pós-verdade é um rótulo potencialmente enganador?
Ernesto Perini: Esse rótulo é, de fato, enganador. O conceito de verdade não foi substituído por nenhum outro conceito. Não existe um conceito diferente que desempenhe o mesmo papel que o conceito de verdade. Esse conceito é constitutivo da proposição, daquilo que a gente diz. A definição mais famosa da expressão pós-verdade está no Dicionário de Oxford: relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais. O que essa etiqueta inadequada capta é que as pessoas aceitam como verdadeiras coisas para as quais elas carecem de evidências e são completamente implausíveis.
Há três temas diferentes aí. O primeiro diz respeito a qual especificidade de hoje. Que as pessoas aceitem coisas contra as evidências, pelo apelo a emoções ou algo do tipo, é algo que sempre ocorreu. A aceitação de teorias falsas e a manipulação política é coisa muito antiga. Temos o exemplo tristemente celebre no final do século dezenove, início do século vinte, que é o livro “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, um documento forjado para atacar os judeus. Embora o rótulo de pós-verdade não existisse na época, a definição se aplica. Estamos falando de um documento forjado motivado por um grupo político e que teve a influência nefasta que se conhece. Não foi o primeiro nem será o último.
Em segundo lugar, assim como essa ideia da “pós-verdade”, as fake news também não são uma coisa nova. O fato de a imprensa mentir, por meio de notícias falsas, está longe de ser novo. O fato de as pessoas acreditarem em eventuais mentiras veiculadas na imprensa também é algo que está longe de ser novo. Devemos distinguir duas coisas aí. Em um pólo temos teorias como o terraplanismo ou ideias nefastas como a de que vacinação causa autismo. No outro pólo temos, não teorias, mas informações sobre fatos simples que são enunciadas. Nos Estados Unidos tivemos o caso “pizzagate”, que tratava do suposto envolvimento dos Clinton e dos democratas em um tráfico sexual de crianças baseado em uma pizzaria em Washington. Foi uma invenção completa, mas muitas pessoas acreditaram nela. No caso do Brasil, a coisa mais impressionante para mim foi a história da mamadeira de piroca. É quase incompreensível como alguém tomar algo assim como verdadeiro. O kit gay é outro exemplo.
Essas informações deveriam ser recusadas por duas razões. No caso do Brasil, elas circularam por veículos não oficiais e que não tem dimensão pública. Só isso já deveria levantar uma suspeita. A segunda razão é que são teses totalmente implausíveis.
O caso de teorias alternativas como o terraplanismo ou anti-vacinação é diferente. Nestes casos é mais difícil desencadear o mecanismo meta-cognitivo porque são teorias. No caso da suposta relação entre a vacinação e o autismo, por exemplo, uma pessoa que não é especialista não vai conseguir demonstrar que é verdadeiro nem que é falso. O conjunto das autoridades científicas reconhecidas afirma que não existe tal relação. Por outro lado, todas as pessoas que afirmam existir essa relação são outsiders. Isso é uma indicação de que essa tese é falsa, mas há um mecanismo de deferência a especialistas operando aí. No caso da mamadeira de piroca, cada pessoa deveria, individualmente, desencadear esse mecanismo.
Há uma pesquisadora italiana chamada Ana Elisabetta Galeotti, que fez uma análise do caso da “pizzagate”. Segundo ela, quando uma notícia ou uma informação é muito contrária à identidade ideológica da pessoa, ela bloqueia os mecanismos que permitem a reavaliação dessas crenças. Ela usa uma ideia da economia que se refere aos “custos afundados”. É mais ou menos quando você paga muito caro por uma coisa e, mesmo se ela não funcionar, você vai continuar falando que ela é boa pois já gastou uma boa quantia. Para a pesquisadora, há crenças que têm um valor identitário muito grande, de modo que, se essas crenças forem recusadas, a pessoa terá um custo muito grande.
Sul21: Quais são os desafios que esse cenário coloca para os centros produtores de conhecimento, como as universidades, e para os seus cientistas e pesquisadores?
Ernesto Perini: Esses desafios são enormes. Em primeiro lugar, esse cenário traz um desafio para as democracias. Vários autores já disseram que, do ponto de vista individual, existe uma racionalidade neste comportamento de manter crenças que têm um papel identitário na comunidade contra a base evidencial. Agora, do ponto de vista coletivo, isso é desastroso. Existem decisões públicas que dependem do saber especializado e de um cálculo das relações meio-fim. Se eu quero obter um fim determinado tenho que saber quais os meios que devo dispor para obtê-lo. E isso depende do conhecimento científico. Para tomar essas decisões públicas, portanto, tenho que aceitar o que os cientistas dizem. Por outro lado, a compreensão das questões em jogo também depende da compreensão do enquadramento adequado das perguntas, o que também depende do conhecimento científico. A perda desse conhecimento faria com que perdêssemos tanto os meios adequados para atingir os fins que queremos, quanto o próprio enquadramento do problema.
Filósofo explica – com evidências – o que leva pessoas a crerem em teorias estapafúrdias, como o terraplanismo. E como a extrema-direita se aproveita de emoções identitárias para atacar o conhecimento e promover o ódio ao próximo
Por Ernesto Perini, entrevistado por Marco Weissheimer, no Sul21
A universidade está sob ataque. E não é só no Brasil. Centros de produção de conhecimento e comunidades de valores éticos e políticos que defendem a democracia, a liberdade de pensamento e o respeito às diferenças, elas se tornaram alvo da onda conservadora e de extrema-direita que atinge diversos países no mundo. A munição desse ataque conjuga o uso de fake news, informações falsas e crenças desprovidas de qualquer evidência, mas que funcionam como critérios identitários, com um mesmo objetivo: desmoralizar as universidades como centro produtores de conhecimento e de diversidade.
Para o pesquisador Ernesto Perini Santos, professor do Departamento de Filosofia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o resultado conjugado desses ataques é desastroso para a produção do conhecimento. “Se a universidade perde a liberdade e passa a não funcionar mais com a sua própria dinâmica, nós perdemos a produção do conhecimento. A dinâmica de produção do conhecimento tem que funcionar livre de constrangimentos”, afirma.
o Filósofo avalia, entre outros temas, por que as pessoas passaram a tomar como verdadeiras coisas sobre as quais elas não têm evidência nenhuma e são completamente implausíveis. Para Ernesto Perini, essa proliferação pode ser comparada a uma epidemia: “O nosso problema em relação a coisas como o terraplanismo, o criacionismo ou o negacionismo em relação ao aquecimento global é quase um problema de epidemiologia de ideias”.
Sul21: Como surgiu teu interesse em abordar os fenômenos da chamada “pós-verdade” e das fake news como objetos de uma reflexão filosófica?
Ernesto Perini: Eu, como muita gente, estou muito preocupado com o que está acontecendo no mundo, com a eleição de governos autoritários e antidemocráticos, cuja vitória foi resultado de campanhas que utilizaram informações falsas, sem nenhuma base evidencial e sem nenhuma razoabilidade. Trata-se de um fenômeno global. Nós vimos aqui no Brasil como a eleição de Bolsonaro se deu, em grande medida, baseada na difusão de notícias e informações falsas, mas isso aconteceu em outros lugares também, associado sempre a um determinado tipo de política. Não é uma coisa distribuída de maneira uniforme e homogênea no espectro político.
Sul21: Em que medida, na tua avaliação, as novas formas de circulação da informação passaram a influenciar o processo de formação de crenças das pessoas?
Ernesto Perini: Muita gente afirmou que, com as possibilidades de difusão de informação pela internet, todo mundo poderia produzir conteúdo, sem nenhum filtro institucional ou epistêmico, e que isso seria bom para a produção do conhecimento. Em alguma medida isso é verdade. Hoje, o acesso a qualquer tipo de informação é muito maior do que antes. Você pode, praticamente sobre qualquer tema, achar informações sobre ele, das maneiras mais diversas e em diferentes níveis. A Wikipédia é só uma maneira de fazer isso. Há várias outras maneiras que realizam esse ideal de, digamos, democratização do acesso à informação. Mas há outros efeitos que também devem ser considerados.
Esses outros efeitos decorrem de um conjunto de fatos conjugados. Em primeiro lugar, a difusão de informação na internet é muito mais barata que o modelo de difusão de informação anterior. E é mais barato em dois sentidos. Ela custa mais barato mesmo. Publicar um livro é muito mais difícil e caro, assim como publicar em uma revista acadêmica. Já na internet, qualquer um pode criar um site e publicar conteúdo sobre um tema qualquer. Mas há outro custo que é muito menor na internet, que é o custo reputacional. Numa comunidade pequena, seja no caso de uma cidade ou de uma comunidade acadêmica determinada, se você defender uma tese que é manifestamente falsa, você vai pagar o custo dessa defesa. Todo mundo da sua comunidade vai dizer que essa tese não tem sentido nenhum. Com isso, vou pagar um custo com a minha reputação. Já a internet faz esse custo praticamente desaparecer. Sempre haverá quem concorde com a sua afirmação. Algumas pessoas dirão que é uma estupidez, mas outras pessoas dirão que você está certo. Então, você pode escolher quem você escuta. Em certo sentido, a própria dinâmica da internet escolhe com quem você reage.Um terraplanista, por exemplo, não tem espaço para defender suas teses na universidade, pois se trata de uma tese completamente estapafúrdia, que não faz sentido nenhum. Mas ele pode criar um blog sobre isso e defender sua tese em um espaço sem filtro acadêmico.
Um sociólogo francês, chamado Gérald Bronner, verificou que se você fizer uma pesquisa no Google sobre a “psicocinese” (a capacidade de mover os objetos com a mente), dos 30 primeiros sites listados na busca, 70% afirmam que ela existe. O mesmo padrão existe quanto à existência do monstro do Lago Ness ou para o terraplanismo. O que acontece, por um lado, é que essas crenças têm um valor identitário para as pessoas. Por outro lado, não faz sentido algum entrar nestes espaços para tentar refutar essas crenças. Isso não teria efeito nenhum para essas pessoas pois essas crenças têm um papel identitário. Tudo isso cria uma situação muito estranha que tem um efeito de retroalimentação, gerando uma ilusão de consenso que resulta em toda essa oferta viciada que existe na internet.
O terceiro fator está associado à tese inicial de que o fato de a oferta ser desregulamentada, sem filtro, resultaria em uma ampliação do conhecimento. O resultado disso seria que as teorias científicas iriam prevalecer. No entanto, isso não está acontecendo por duas razões, em certa medida, independentes. A primeira razão é que as teorias científicas são de difícil acesso. Para você dominar uma teoria da física, química, biologia, genética ou seja lá que área do conhecimento for, é preciso ter um arsenal teórico importante. É preciso ter um instrumental matemático, ter acesso a dados que são eles mesmo apresentados de maneira complexa. Assim, uma teoria científica vai produzir, frequentemente, a sensação de frustração. Além disso, uma teoria científica pode ir contra valores que as pessoas já têm, contra imagens que elas têm do mundo, contra visões mais intuitivas.
Sul21: A maioria das pessoas não conseguiria explicar, tecnicamente, os princípios da Lei da Gravidade, de Newton, ou de outras teorias científicas. Boa parte das nossas crenças em teorias científicas estabelecidas repousa também numa confiança na comunidade científica, em um modo de fazer ciência. Parece que essa relação de confiança também está sendo atingida em meio a esse processo de proliferação de crenças e teorias absurdas.
Ernesto Perini: Sim. O conhecimento especializado demanda muitos elementos. A gente precisa conhecer muita coisa para entender, por exemplo, debates envolvendo o tema da manipulação genética. Temos aí problemas éticos envolvidos, mas também conhecimento técnico que é dominado por quem estuda genética. Isso vale para tudo. Sobre esses temas a gente defere para especialistas. Fazemos isso o tempo todo. Quando você vai a um médico você defere conhecimentos técnicos para ele. Quando você contrata um engenheiro ou arquiteto, da mesma forma. Então, a falta da confiança no especialista terá um papel muito importante na ocorrência dos fenômenos que estamos abordando aqui.
Sul21: Nos casos envolvendo temas de gênero e de sexualidade, o fato de determinadas crenças assumirem um papel identitário fica claro. Já em casos, como o da terra plana, essa relação não parece tão óbvia. Em que medida a crença na teoria da terra plana pode desempenhar esse papel identitário? Por que essa teoria, que já é antiga, ganhou a proporção que ganhou, na tua opinião?
Ernesto Perini: Na era moderna, a origem desse fenômeno remonta a um inglês do século dezenove, Samuel Rowbotham, que escrevia sob o pseudônimo “Parallax”. Ele diz que quer tomar o conhecimento para o povo e desenvolve a tese de que cada um deve produzir o próprio conhecimento a partir da própria experiência e das ferramentas lógicas que cada um tem. Esse inglês está na origem do terraplanismo contemporâneo, que tem um movimento contínuo desde então, que foi potencializado pelo modo de circulação da informação permitido pela internet.
Os terraplanistas são pessoas que têm como identidade a produção daquilo que tomam como verdadeiro, a partir das experiências que conseguem fazer e que podem ser mais ou menos articuladas e mais ou menos sofisticadas. Cada um é o mestre das próprias teorias, digamos assim. Eu acho que a identidade do terraplanismo é a identidade das pessoas que produzem o conhecimento contra o establishment, contra as autoridades. Isso cria uma identidade. Essa ideia passa a funcionar como marcador de pertencimento a um grupo contra especialistas. Isso se desdobra em duas coisas. A primeira é que eles precisam ter uma teoria de porque as pessoas dizem que a terra não é plana, mas sim um globo. É uma teoria do complô associado, uma teoria da conspiração que abre espaço para uma série de outras teorias. A segunda é que essas teorias, frequentemente, se aliam com outras teorias, com outras visões diferentes em relação ao establishment. Pode ser o movimento contra a vacinação ou a história de que o homem nunca chegou à Lua. É como se dissessem: nós somos as pessoas que não acreditam naquilo que nos dizem para acreditar. Que cada um decida por si mesmo aquilo que é verdadeiro.
Sul21: Mais ou menos junto com o fenômeno das fake news, ganha espaço a noção de pós-verdade. Em um recente seminário, você se referiu a essa expressão como um rótulo potencialmente enganador. Em que sentido, a pós-verdade é um rótulo potencialmente enganador?
Ernesto Perini: Esse rótulo é, de fato, enganador. O conceito de verdade não foi substituído por nenhum outro conceito. Não existe um conceito diferente que desempenhe o mesmo papel que o conceito de verdade. Esse conceito é constitutivo da proposição, daquilo que a gente diz. A definição mais famosa da expressão pós-verdade está no Dicionário de Oxford: relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais. O que essa etiqueta inadequada capta é que as pessoas aceitam como verdadeiras coisas para as quais elas carecem de evidências e são completamente implausíveis.
Há três temas diferentes aí. O primeiro diz respeito a qual especificidade de hoje. Que as pessoas aceitem coisas contra as evidências, pelo apelo a emoções ou algo do tipo, é algo que sempre ocorreu. A aceitação de teorias falsas e a manipulação política é coisa muito antiga. Temos o exemplo tristemente celebre no final do século dezenove, início do século vinte, que é o livro “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, um documento forjado para atacar os judeus. Embora o rótulo de pós-verdade não existisse na época, a definição se aplica. Estamos falando de um documento forjado motivado por um grupo político e que teve a influência nefasta que se conhece. Não foi o primeiro nem será o último.
Em segundo lugar, assim como essa ideia da “pós-verdade”, as fake news também não são uma coisa nova. O fato de a imprensa mentir, por meio de notícias falsas, está longe de ser novo. O fato de as pessoas acreditarem em eventuais mentiras veiculadas na imprensa também é algo que está longe de ser novo. Devemos distinguir duas coisas aí. Em um pólo temos teorias como o terraplanismo ou ideias nefastas como a de que vacinação causa autismo. No outro pólo temos, não teorias, mas informações sobre fatos simples que são enunciadas. Nos Estados Unidos tivemos o caso “pizzagate”, que tratava do suposto envolvimento dos Clinton e dos democratas em um tráfico sexual de crianças baseado em uma pizzaria em Washington. Foi uma invenção completa, mas muitas pessoas acreditaram nela. No caso do Brasil, a coisa mais impressionante para mim foi a história da mamadeira de piroca. É quase incompreensível como alguém tomar algo assim como verdadeiro. O kit gay é outro exemplo.
Essas informações deveriam ser recusadas por duas razões. No caso do Brasil, elas circularam por veículos não oficiais e que não tem dimensão pública. Só isso já deveria levantar uma suspeita. A segunda razão é que são teses totalmente implausíveis.
O caso de teorias alternativas como o terraplanismo ou anti-vacinação é diferente. Nestes casos é mais difícil desencadear o mecanismo meta-cognitivo porque são teorias. No caso da suposta relação entre a vacinação e o autismo, por exemplo, uma pessoa que não é especialista não vai conseguir demonstrar que é verdadeiro nem que é falso. O conjunto das autoridades científicas reconhecidas afirma que não existe tal relação. Por outro lado, todas as pessoas que afirmam existir essa relação são outsiders. Isso é uma indicação de que essa tese é falsa, mas há um mecanismo de deferência a especialistas operando aí. No caso da mamadeira de piroca, cada pessoa deveria, individualmente, desencadear esse mecanismo.
Há uma pesquisadora italiana chamada Ana Elisabetta Galeotti, que fez uma análise do caso da “pizzagate”. Segundo ela, quando uma notícia ou uma informação é muito contrária à identidade ideológica da pessoa, ela bloqueia os mecanismos que permitem a reavaliação dessas crenças. Ela usa uma ideia da economia que se refere aos “custos afundados”. É mais ou menos quando você paga muito caro por uma coisa e, mesmo se ela não funcionar, você vai continuar falando que ela é boa pois já gastou uma boa quantia. Para a pesquisadora, há crenças que têm um valor identitário muito grande, de modo que, se essas crenças forem recusadas, a pessoa terá um custo muito grande.
Sul21: Quais são os desafios que esse cenário coloca para os centros produtores de conhecimento, como as universidades, e para os seus cientistas e pesquisadores?
Ernesto Perini: Esses desafios são enormes. Em primeiro lugar, esse cenário traz um desafio para as democracias. Vários autores já disseram que, do ponto de vista individual, existe uma racionalidade neste comportamento de manter crenças que têm um papel identitário na comunidade contra a base evidencial. Agora, do ponto de vista coletivo, isso é desastroso. Existem decisões públicas que dependem do saber especializado e de um cálculo das relações meio-fim. Se eu quero obter um fim determinado tenho que saber quais os meios que devo dispor para obtê-lo. E isso depende do conhecimento científico. Para tomar essas decisões públicas, portanto, tenho que aceitar o que os cientistas dizem. Por outro lado, a compreensão das questões em jogo também depende da compreensão do enquadramento adequado das perguntas, o que também depende do conhecimento científico. A perda desse conhecimento faria com que perdêssemos tanto os meios adequados para atingir os fins que queremos, quanto o próprio enquadramento do problema.
Atividades
responda esses questionamentos ai com base na linha de pensamento e no conhecimento cientifico
1) Quem ganha e quem perde com esse negacionismo do pensamento cientifico
2) Muita gente afirmou que, com as possibilidades de difusão de informação pela internet, todo mundo poderia produzir conteúdo, sem nenhum filtro institucional ou epistêmico, e que isso seria bom para a produção do conhecimento. Em alguma medida isso é verdade. Hoje, o acesso a qualquer tipo de informação é muito maior do que antes. Você pode, praticamente sobre qualquer tema, achar informações sobre ele, das maneiras mais diversas e em diferentes níveis. A Wikipédia é só uma maneira de fazer isso. Há várias outras maneiras que realizam esse ideal de, digamos, democratização do acesso à informação. Mas há outros efeitos que também devem ser considerados. Quais seriam esses outros fatores que o autor se refere?
3) O terceiro fator está associado à tese inicial de que o fato de a oferta ser desregulamentada, sem filtro, resultaria em uma ampliação do conhecimento. O resultado disso seria que as teorias científicas iriam prevalecer. Afinal de contas o que deu errado na sua opinião poruqe temos tanto acessoa conhecimento mas não o desenolvemos ?
4) na opinião do entrevistado o que torna o conceito de pós verdade como falho ?
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